Relativizar esse sentimento de grandiosidade é preciso, para não incorrermos em perversa arrogância. Fomos, por méritos próprios, é verdade, investidos no poder. Só que o abuso do poder, ou seja, o poder que sobe à cabeça, esse é letal. E atinge a credibilidade da nossa própria Instituição. Servimos à sociedade, promovemos a justiça. É esse nosso mister, quer como Promotores, quer na etapa seguinte da carreira, como Procuradores de Justiça. Ponto
O
saudoso Desembargador e Professor Alaor Terra dizia que não havia
ninguém mais importante do que Juiz novo e Promotor novo. Ele imitava a
postura altiva do Juiz novo e do Promotor novo. Com ele, aprendíamos
Processo Penal. E também nos divertíamos. Melhor, impossível. Ao
assumirmos na Comarca/Promotoria é aquilo: diante da importância do
cargo, todos esquadrinham nossa solitária pessoa natural, que inicia a
árdua missão de forma tão humanamente insegura. Se é esperado que
saibamos tudo já ao chegar, procuramos demonstrar que estamos prontos
com postura impecável.
Observam-nos minuciosamente, não só no local de trabalho, participando das audiências e integrando o Tribunal do Júri. Somos alvo de detida análise ao andarmos despreocupadamente pelas ruas, flagrados quando cumprimentamos transeuntes e observamos a arquitetura local, árvores, flores e passarinhos. Também quando fazemos compras no mercado, ou seja, onde quer que nos encontremos. Vieram me dizer que reparavam que eu caminhava pela cidade até sob sol a pino em vez de andar de carro como todo mundo - que podia andar de carro, é claro. Mas eu morava bem pertinho do Fórum - naquele tempo a gente trabalhava no prédio do Fórum. Para que carro? No início, nem tinha um. Depois, quando meu pai fez um up grade para um Monza, adquiri dele, bem feliz, o velho Corcel II cor creme da família.
Eis as perguntas que pairam no ar, na nossa novel Comarca: quem será aquela pessoa recém-chegada? De onde veio? A que veio? O que pensa? O que faz da vida e o que fará conosco? Só trabalha, ou tem vida própria? Terá experiência de vida? Ou só conhece a teoria? Como agirá nos processos e nas investigações? E quanto aos fatos pendentes de investigação, o que fará? São muitas as questões, mas se pudermos resumir, é o seguinte: o que fará conosco ou por nós?
Quando a gente é, assim, novo, inevitável nos sentirmos importantíssimos. Pelo menos ali, naquela cidadezinha, de regra, longínqua. Integramos o exíguo rol das autoridades locais. E temos fundadas razões para nos sentirmos assim. Pudera. É uma luta, ou melhor, uma sucessão de batalhas, a preparação para esse tipo de certame. Merecemos, por certo, os louros pela final aprovação e investidura no tão almejado cargo. E a família, então? Que orgulho daquele ser educado com tanto amor e carinho desde a mais tenra idade... como o tempo passa rápido.
Só que relativizar esse sentimento de grandiosidade é preciso, para não incorrermos em perversa arrogância. Fomos, por méritos próprios, é verdade, investidos no poder. Só que o abuso do poder, ou seja, o poder que sobe à cabeça, esse é letal. E atinge a credibilidade da nossa própria Instituição. Servimos à sociedade, promovemos a justiça. É esse nosso mister, quer como Promotores, quer na etapa seguinte da carreira, como Procuradores de Justiça. Ponto.
Um combativo e experiente colega hoje aposentado afirmou, de forma categórica e perante grande público, que éramos Promotores de Justiça 24 horas por dia! Diuturnamente, onde quer que estejamos, estamos imbuídos da nossa missão. Aquilo me impressionou sobremaneira, ainda mais considerando o contexto em que o veredito foi proferido: para justificar determinadas prerrogativas. Os fundamentos apontados para justificá-las eram equivocados.
Ora, tal visão está em conformidade com a etapa inicial da carreira. Fusão total da pessoa natural com a Instituição Ministerial - desculpem, não resisti ao trocadilho. Mas nossa própria vida (ei, lembremos que, de conhecida, só existe uma!) não se resume ao nosso relevante trabalho. É uma pena quando o trem passa e estamos distraídos, deixando de embarcar e de testemunhar as inúmeras facetas do diversificado trajeto...
Esse casamento monogâmico com a Instituição não combina com a sabedoria trazida com a maturidade. Quem não corrige aquela arrogância natural do início da carreira, tão bem traduzida pela postura corporal excessivamente altiva, jocosamente representada pelo Professor Alaor Terra, torna-se uma figura triste e patética. Ninguém - familiares, amigos e servidores - merece conviver com essa criatura, o Promotor 24 horas por dia!
Procuradora de Justiça 24 horas por dia? Eu, não!
Autora
Marta Leiria Leal Pacheco é procuradora de Justiça
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